O dia em que um avião quase derrubou prédio-símbolo de Nova York
28/08/2025
(Foto: Reprodução) Foto de 1930 mostra operário fazendo a estrutura metálica do Empire State. Foto de Lewis Hine, hoje em Domínio Público.
Domínio Público via BBC
Naquele verão de 80 anos atrás, os Estados Unidos ainda vestiam o caráter sóbrio da Segunda Guerra Mundial. Se na Europa o conflito já havia terminado, com a rendição dos nazifascistas, a Ásia estava em combustão, com o Japão ainda lutando.
Em uma manhã de sábado, em 28 de julho de 1945, um avião militar chocou-se contra o edifício Empire State, então o arranha-céu mais alto do mundo, um símbolo da pujança de Nova York, que havia sido inaugurado 14 anos antes. O edifício, de 102 andares, tem 444 metros de altura.
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Para quem se lembra dos atentados de 11 de setembro de 2001, com as Torres Gêmeas do World Trade Center indo ao chão, essa história ecoa com a mesma sensação de um ataque deliberado contra uma construção icônica — curiosamente, aliás, foi a Torre Norte do World Trade Center que tirou do Empire State o posto de maior prédio do mundo, nos anos 1970.
Nesse caso de 80 anos atrás, contudo, o choque não foi intencional.
Mas o impacto foi histórico e deixou vítimas. Um bombardeiro B-25 Mitchell das Forças Armadas dos Estados Unidos, batizado de Old John Feather Merchant, realizava um voo de rotina, para transporte de pessoal, partindo da base aérea Hanscom, em Bedford, Massachussetts.
Seu destino era o aeroporto de Newark, em Nova Jersey, onde ele iria buscar um oficial militar.
O deslocamento, embora feito por militares em avião militar, não estava diretamente ligado aos esforços de guerra.
Segundo noticiou à época o jornal The New York Times, a aeronave era destinada a treinamento e não carregava armamentos.
No início daquela semana, o piloto, o tenente-coronel William Franklin Smith Jr. e seu superior haviam partido de uma base de Dakota do Sul.
O comandante desembarcou em Newark e o tenente-coronel prosseguiu até a base aérea de Bedford, em Massachusetts — ali aproveitaria dias de folga para visitar sua mulher.
O oficial William Mitchell, em foto dos anos 1920, feita pelas forças armadas americanas.
Domínio Público via BBC
No sábado do acidente, portanto, Smith Jr. estava fazendo o caminho de volta e precisava buscar seu superior em Nova Jersey.
Havia um nevoeiro denso e, em tempos de parcos equipamentos de navegação aérea, não tinha visibilidade.
Quando ele se aproximou do aeroporto La Guardia, em Nova York, a 26 quilômetros de seu destino final, foi advertido pela torre de controle de que não havia condições de prosseguir e que era melhor que ele pousasse ali.
Visibilidade nula e desobediência
"No momento, não consigo ver a torre do Empire State", disse o controlador de voo a ele, para dar dimensão da dificuldade. O piloto respondeu de forma lacônica com um "entendido, torre, obrigado". E seguiu.
Conforme relata à BBC News Brasil o jornalista João Paulo Moralez, apresentador do podcast sobre aviação militar Fox 3 Kill, depois de "alertado pelos controladores de voo de que deveria fazer pouso imediato", Smith Jr. preferiu ignorar as ordens.
"Sobrevoou Manhattan e baixou a altitude de 2 mil pés, mínimo aceitável para sobrevoo na ilha, para 1 mil pés, numa tentativa de enxergar o terreno e se reorientar", explica Moralez — 1 mil pés são cerca de 300 metros.
Foi quando, ressalta o especialista, ele percebeu que estava no meio dos prédios de Nova York. O piloto decidiu subir para tentar evitar uma tragédia.
Foi quando o Empire State surgiu à sua direita. "Mesmo tentando, não conseguiu evitar a colisão", diz Moralez.
Eram 9h49, dois ou três minutos depois do seu último diálogo com a torre de controle. O B-25 bateu no prédio a uma velocidade de 320 quiômetros por hora.
O acidente destruiu os escritórios ocupados por entidades de assistência ligadas à Igreja Católica que funcionavam entre os andares 78 e 80 do prédio. Um buraco de mais de 30 metros quadrados foi aberto, mas a estrutura do edifício não foi danificada.
A bordo, além do piloto, estavam o sargento Christopher Domitrovich e o mecânico de aviação Albert Perna. Os três morreram — os restos mortais de Perna só foram encontrados dois dias depois.
Onze pessoas que estavam no Empire State morreram e pelo menos 24 ficaram feridas.
No momento do acidente, cerca de 50 pessoas estavam no mirante do edifício.
"Talvez por ser um sábado, havia menos pessoas no prédio e a tragédia não foi maior por isso", comenta Moralez.
Um dos motores da aeronave atravessou o prédio e foi parar no outro quarteirão. Ao despencar, incendiou um ateliê de arte.
"Foi uma espécie de chuva metálica em cima dos carros e das pessoas que estavam passando embaixo", conta à BBC News Brasil o consultor aeronáutico Gianfranco Panda Beting, publisher da revista Flap International e um dos fundadores da Azul Linhas Aéreas.
O outro motor e parte do trem de pouso desabaram pelo fosso de um dos elevadores. Com o vazamento do combustível do avião, o fogo espalhou-se pelos andares afetados. Os bombeiros de Nova York conseguiram controlar as chamas em 40 minutos.
Como não houve avaria estrutural, o Empire State foi reaberto parcialmente na segunda-feira, dia 30, menos de 48 horas depois do acidente histórico.
Obras de reforma reconstruíram a parte afetada em cerca de três meses.
"Embora o prédio não tenha sido feito para resistir a impactos dessa magnitude, a sua estrutura provou-se se robusta para tal situação", diz Moralez.
"Pelo fato de a dimensão do avião não ser tão grande e por estar próximo ao seu destino final, indicando ter pouco combustível nos tanques que comportavam quase 3,5 mil litros, não houve grande incêndio no prédio."
De acordo com depoimentos de quem estava no edifício na hora do choque, as pessoas pensaram que Nova York estava sendo bombardeada e o barulho da explosão era resultado de algum ataque aéreo. O clima de guerra, afinal, ainda pairava.
O New York Times também noticiou que alguns pensaram se tratar de um terremoto.
"De repente, as chamas alimentadas por combustível se espalharam pelo andar. Secretárias largaram seus blocos de anotações, executivos interromperam conversas no meio da frase", escreveu o matutino.
Empire State em foto de 1932, de autor desconhecido. Foto do US National Archives and Records Administration, em domínio público.
Domínio Público via BBC
Consequências
"Foi um acidente muito falado porque, imagina, um avião se colidiu com aquele que era então o prédio mais alto do mundo", pontua Beting.
"Era um momento em que se discutia muito a questão dos arranha-céus e do uso de aviões militares sobre cidades."
"Foi o acidente mais famoso da aviação em Nova York até os eventos de 11 de setembro de 2001", define Moralez.
Segundo especialistas, o ocorrido não impactou diretamente em melhorias com relação a segurança de voo.
Mas, evidentemente, com os avanços da tecnologia aeronáutica de lá para cá dificilmente algo assim poderia tornar a acontecer de modo não intencional — a navegabilidade, graças aos aparelhos, é muito mais segura atualmente.
O investigador de acidentes aeronáuticos Mauricio Pontes, gestor de crises e CEO da C5i Consultoria de Riscos e Crises, ressalta à BBC News Brasil que se a "navegação por instrumentos já estivesse tão evoluída" quanto é hoje, o acidente não teria ocorrido.
"Em termos de segurança, mudou tudo. A gente está falando de 80 anos de evolução", diz Beting.
O consultor lembra que não foi o acidente em si que "catalisou as mudanças tecnológicas". Mas o pós-guerra desencadeou "uma nova fase no desenvolvimento de serviços de controle de tráfego, de radar, coisas que aumentariam sobremaneira a segurança".
No caso histórico, contudo, como não foi constatada nenhuma falha estrutural do avião ou erro de procedimento, o problema foi a atitude do piloto.
Moralez lembra que as investigações que costumam ser realizadas após acidentes aéreos servem para "gerar relatórios a fim de evitar novos erros semelhantes".
"Esses relatórios são abertos e distribuídos ostensivamente para os pilotos, para a comunidade aeronáutica, para que se crie uma cultura de segurança de voo."
Ele lembra que, de acordo com os relatórios produzidos após as investigações conduzidas na época, o acidente foi causado pelo mau tempo.
"O piloto estava com dificuldades e procurou descer para melhorar a visibilidade, sair de dentro da camada de nuvens. Desceu abaixo do esperado em uma área urbana e, por uma fatalidade, atingiu o Empire State", relata Pontes.
Moralez ressalta que a tragédia foi consequência "de uma ação isolada do piloto que decidiu descumprir uma ordem" dos controladores de voo.
"Em termos de normas e legislações, nada mudou por conta desse acidente. Se o piloto tivesse seguido a ordem de ficar a 2 mil pés de altitude, ele não teria colidido com o Empire State, que é um pouquinho maior do que 1,5 mil pés", salienta Moralez.
"Ou se ele tivesse cumprido o que foi dito pelo controlador, ou seja, pousar imediatamente no La Guardia."
A lição que ficou para a aeronáutica, na visão de Moralez, é a importância de seguir as orientações à risca.
"Provavelmente ele desobedeceu porque pensava que tinha de chegar [ao destino], cumprir a missão. Ou por ego. Existe muito essa questão, de que 'não é um nevoeiro desse que vai me impedir', 'eu consigo', 'eu sou o maioral'", afirma.
"Evidentemente que [o acidente] também trouxe lições importantes em relação ao fator humano, quanto a questões de decisões de comando. Além de subsídios para o incremento da navegação por instrumentos", analisa Pontes.
"Foi um acidente muito relevante [para a história da aviação] e com repercussão midiática na época."
Fotos do B-25 feitas pelas forças armadas americanas.
Domínio Público via BBC
A aeronave
Moralez conta que o B-25 Mitchell foi um bombardeiro médio, de dois motores, produzido pela empresa North American a partir de 1940.
"Foi amplamente utilizado na Segunda Guerra Mundial", comenta ele. Quase 10 mil unidades chegaram a ser produzidas.
Seu nome Mitchel era uma homenagem ao oficial americano William Lendrum Mitchel (1879-1936), um dos idealizadores da Força Aérea dos Estados Unidos.
Quinze aeronaves desse modelo participaram do histórico ataque contra Tóquio em 18 de abril de 1942.
"Foi uma ação simbólica, mas muito importante para abalar o moral japonês", frisa Pontes. "[Na ocasião] o avião levava bombas em seu compartimento interno", pontua o jornalista Moralez.
"[O episódio] se tornaria lendário porque foi a primeira vez que os Estados Unidos atacaram o território japonês", lembra Beting.
Quatro meses antes, em dezembro de 1941, a Marinha Imperial Japonesa havia atacado a base naval americana de Pearl Harbor, no Havaí.
Os Estados Unidos chegaram a exportar a aeronave. Reino Unido, União Soviética, Peru, México, Indonésia, República Dominicana, Colômbia, Cuba, Chile, China e Brasil estão entre os países que chegaram a utilizar o modelo. Os bombardeiros B-25 estiveram em operação até os anos 1970.
"Foi um avião de extremo sucesso nas missões realizadas na Segunda Guerra. Era um avião muito querido pelos pilotos, muito eficiente. Podia ser equipado também com canhões para se defender de intercepção de caças", conta Pontes.
O B-25 tinha mais ou menos o tamanho de um ônibus articulado urbano — 16 metros de comprimento. Chegava a 482 quilômetros por hora e podia voar a até 7.162 metros de altura. Em geral, sua tripulação era de cinco a sete militares.